Vasco é um dos 12 clubes da Série A que contam com psicólogo na comissão técnica Sexta-feira, 07/06/2024 – 02:39 Antes vista como tabu, a saúde mental dos jogadores de futebol se tornou um tema fundamental na atualidade. Nos últimos meses, atletas de elite, como o atacante Richarlison, e ex-jogadores, como Ronaldo Fenômeno, destacaram a importância do trabalho de psicólogos em suas vidas e carreiras.
Além de atendimentos particulares, esses profissionais atuam como parte integrante da comissão técnica de clubes. Entre as 20 equipes da Série A do Brasileirão, 12 têm profissionais contratados nessa área. O Cruzeiro e o São Paulo têm departamento, mas ainda buscam um novo profissional.
*Michele Rios já era profissional do clube. Patrício Morales veio na comissão técnica de Gabriel Milito.
O espaço da psicologia dentro das comissões técnicas vem crescendo com o tempo. Segundo explica Andreia Cardoso, especialista em Psicologia do Esporte aplicada ao alto rendimento, existem duas vertentes:
Eles trabalham tanto para “otimizar o desempenho esportivo dos atletas” quanto para ajudar, amparar e acolher os jogadores individualmente, falando especificamente sobre o futebol.
– A vida do psicólogo que é inserido em clubes é participar da rotina de treinos. Precisa de espaço para falar e se fazer entender sobre o que ele trabalha, a sua forma de trabalho. Fazer com que tanto a comissão técnica quanto atletas encarem como mais uma ferramenta de auxílio na performance.
A presença de profissionais deste setor em comissões técnicas é um fenômeno relativamente recente e não tão comum. Cardoso ressalta que trabalhar a saúde mental de atletas é um complemento a todo o trabalho feito e uma ferramenta para alcançar a excelência, assim como a fisiologia, a fisioterapia e a preparação física.
Mas o espaço no futebol ainda não é tão claro. Fernando Diniz é um dos principais técnicos do futebol brasileiro e também um dos expoentes da profissão a comentar o assunto abertamente.
Formado em Psicologia, o treinador ressalta a importância do trabalho dentro dos clubes, mas acredita que o essencial precisa ser feito pelos atletas fora do dia a dia do CT.
– Eu acho muito importante, tem que ser uma coisa mais profunda e levada mais a sério. Talvez o psicólogo no clube de futebol tenha a função de identificar o problema e encaminhar. Eu acho muito difícil o psicólogo no clube conseguir fazer a terapia. Acho que fazer um primeiro acolhimento e depois direcionar para espaços fora do clube, para o jogador poder desenvolver com mais profundidade.
Muita gente precisa quebrar também esses preconceitos que ainda existem no futebol, ainda muito forte, de jogador aceitar fazer uma terapia para poder se reorganizar emocionalmente. Teria um ganho muito grande.
— Fernando Diniz
Entre os clubes que não possuem um psicólogo contratado para a comissão técnica, existem diferentes procedimentos para ajudar a cuidar da saúde mental dos atletas.
No Flamengo, por exemplo, não há profissional presente no dia a dia, mas o clube tem psicólogos parceiros – contratados como prestadores de serviço – para os quais encaminha os atletas. Um caso recente ocorreu com Michael, hoje no Al Hilal.
O procedimento adotado começa no departamento médico. Quando os profissionais da área identificam uma demanda por parte dos jogadores, eles acionam esse prestador para realizar o atendimento.
O São Paulo vive um cenário um pouco diferente. Há o departamento destinado à psicologia, porém, como perdeu a sua profissional para o Corinthians na virada do ano, o clube ainda está em busca de um novo psicólogo. Internamente, o Tricolor considera a área importante e usa como exemplo a ajuda que Alisson recebeu em 2023 para superar quadro de depressão.
O CEO do Fortaleza, Marcelo Paz, classifica a presença do psicólogo no futebol como “muito importante”, assim como em qualquer setor da sociedade. Ele ressalta que, por causa da exposição, ter alguém para ajudar a lidar com as pressões é importante dentro do elenco.
Segundo Paz, o psicólogo que trabalha no Leão do Pici está presente no dia a dia em todas as atividades e também há o atendimento individual aos jogadores, cujos nomes são mantidos em sigilo em razão da ética profissional.
O clube recentemente passou por um episódio marcante no atentado ao ônibus após uma partida contra o Sport pela Copa do Nordeste. O dirigente destacou como o profissional atuou para ajudar os atletas e as famílias após o episódio.
– Nosso psicólogo ficou à disposição para ajudar não só os atletas como as famílias. Para ajudar em como lidar com essa situação traumática e manter o bem-estar, a harmonia e a alegria de trabalhar e a performance. Porque no futebol somos cobrados por performance o tempo todo e, mesmo com o acidente, não deixamos de ser.
O diretor de futebol do Fluminense, Paulo Angioni, vai além. Para o dirigente, todos os clubes já deveriam ter uma área voltada para a psiquiatria, com o objetivo de fazer um atendimento mais completo, juntando as duas áreas da saúde mental.
Esse foi o movimento adotado pelo Vasco recentemente. O clube fundou um “Núcleo de Psicoterapia Integrada” que tem tanto um psicólogo quanto um psiquiatra. A inspiração vem de franquias da NFL, principal liga de futebol americano dos Estados Unidos.
Vida de jogador
Para o atacante André Felipe, recém-contratado pelo América-RJ e com passagem por grandes clubes da Série A do Brasileirão, o acompanhamento psicológico é fundamental na carreira de um atleta de alto rendimento.
Ele viveu um período difícil quando deixou o Santos, em 2010, e se transferiu para o Dinamo de Kiev, da Ucrânia. Ao se deparar com um futebol e uma cultura muito diferentes, ele recorreu à terapia.
– A importância nos tempos de hoje é ainda maior por causa das redes sociais e toda a exposição que causa. As pessoas comentam ao vivo e parece que a rede social traz o ódio. Todos os jogadores precisam se blindar disso. Você acaba achando que a avaliação da internet é real e esquece do teu próprio valor, da tua luta, do teu trabalho e do dia a dia.
O atleta de alto rendimento precisa estar bem mentalmente. Esse é um dos pilares. Não adianta estar bem fisicamente e mal psicologicamente
— André Felipe
Há outros clubes que chamam psicólogos para atendimentos pontuais em momentos de maior pressão, seja na luta contra o rebaixamento ou por um título. André, no entanto, ressalta a importância de um trabalho diário.
– Muitas pessoas não percebem que o atleta não está bem em casa e isso acaba afetando no rendimento. Ter um psicólogo que percebe e conversa com o atleta é muito importante. Eu acho que todo clube deveria ter, sim. Entender que o atleta não é uma máquina.
O atleta de futebol é 80% mental. Você vê que alguns jogadores quando estão bem de confiança são outros jogadores. Ninguém desaprende a jogar. Eu acho que o psicólogo ajuda a equilibrar o físico com o mental
— André Felipe
Abraço no título da Libertadores
O Fluminense é um dos clubes que têm um profissional da psicologia na comissão técnica. Emily Gonçalves entrou em evidência após um episódio na final da Conmebol Libertadores de 2023. Ainda no gramado, minutos depois da conquista do título, Jhon Arias abraçou a psicóloga e lhe agradeceu pelo trabalho no clube.
– Minha avó queria que eu estivesse aqui, e eu estou feliz. Então é pelo seu pai, pela minha avó… Estamos na história e sei que falta ainda. Obrigado por tudo. Você me faz ser o que eu sou hoje.
Emily trabalha com o elenco profissional do Tricolor desde 2018, mas chegou ao clube antes para ajudar no processo de formação de jogadores no centro de treinamentos da base, em Xerém.
Enquanto integrante da comissão técnica, o trabalho da psicóloga é diário e bem diferente daquele clínico feito em consultório. Ela se faz presente no dia a dia do elenco, com o objetivo de ser vista como parte do grupo de trabalho.
Os jogadores respondem diariamente a um questionário sobre saúde que gera um relatório para os profissionais. Ela analisa esses dados e conversa com os outros departamentos para traçar possíveis intervenções.
– Dependendo da situação, quando eles apresentam alguma demanda de melhoria, a gente tem um plano de ação para poder ajudar a desenvolver uma habilidade ou melhorar alguma dificuldade ou lidar mesmo com alguma situação adversa, seja interna ou externa – explica Emily.
A maneira como isso é conduzido no dia a dia é não falando sobre o que está faltando, mas sobre como ele está se sentindo. É muito mais acolher do que propriamente abordar alguma questão quando não está bem.
— Emily Gonçalves
Em entrevista ao ge, Emily ressaltou a importância de continuidade para o desenvolvimento do trabalho de um psicólogo dentro de um clube de futebol, algo que não seria possível com intervenções pontuais.
O foco do atendimento ao grupo de atletas é fazer com que os jogadores lidem bem com pressões e cobranças, mas também conheçam os próprios limites, assim como consigam captar bem as mensagens passadas no clube.
– Por exemplo, o Diniz dá uma informação em uma reunião. Eu estou atenta ao que ele está tentando dizer, e o atleta acaba entendendo de maneira errada. Faço ele refletir, por exemplo: “Mas o que você entendeu disso?” Então, quando a gente está no ambiente, tem mais possibilidade de facilitar o entendimento daquela mensagem, facilitar a evolução daquele atleta.
Com o psicólogo envolvido no dia a dia e integrado à comissão técnica, a saúde mental ganha espaço nos clubes. E, assim como no restante da sociedade, a busca por uma mente sã deixa de ser um tabu para ser fator primordial na evolução dos atletas.
Fonte: ge